Futebol: de paixão popular a negócio

Por Gustavo Mehl

Os debates sobre os impactos da Copa do Mundo costumam acontecer longe das quatro linhas. Quando avaliamos as consequências negativas das transformações levadas a cabo para o evento, em geral relegamos a um segundo plano os efeitos que atingem a atividade que serve de pretexto para isso tudo: o próprio futebol.

As imposições culturais que acompanham as reformas dos estádios para a Copa não podem ser menosprezadas, uma vez que têm conseqüências inestimáveis, imensuráveis e de difícil reparação. A cultura, os costumes, a criatividade e a forma de se organizar e se manifestar do torcedor de futebol brasileiro está sendo violentamente impactada e transformada. O esporte – paixão nacional e um símbolo de participação popular – corre o risco de, no caminho para a Copa, ser reduzido a um negócio rentável para seus “donos” e um serviço prestado a seus “consumidores”.

Em 1950, ano de realização da primeira Copa do Mundo no Brasil, o futebol já era uma verdadeira febre entre os brasileiros. Construído para este torneio, com capacidade oficial de 155 mil pessoas, o estádio do Maracanã foi uma das principais obras já feitas no país. O “Maior do Mundo” consagrou uma divisão setorial que já era encontrada nos principais estádios: Geral, Arquibancada, Cadeiras Numeradas, Camarotes e Tribuna de Honra, esta última reservada para autoridades e personalidades. Se, por um lado, este desenho era uma representação da segregação econômica, social e política do país, por outro, garantia a participação de todos na plateia do mesmo espetáculo. Na final da Copa de 50, registros dão conta de que cerca de 203 mil brasileiros assistiram in loco o Brasil ser derrotado pelos uruguaios.

203 mil pessoas viram a final da Copa de 50, o equivalente a 8,5% da população do Rio. Arquibancada e Geral acomodavam 80% do público

É importante que se registre, também, que a divisão garantia a maior parte do estádio a torcedores das classes baixa e média: enquanto 93 mil e 500 lugares estavam reservados para arquibaldos, e 30 mil para geraldinos, somente 1,5 mil ingressos eram colocados à venda para aqueles que quisessem se dar ao luxo de ir de camarote. Somadas, arquibancada e geral acomodavam 80% do público.

Durante décadas, estádios como o Maracanã e tantos outros pelo Brasil se transformaram em espaços míticos que reuniram brasileiros de todas as classes sociais. Avós, pais, filhos, netos e bisnetos comungaram da paixão pelo futebol e da experiência festiva, musical e catártica de estar em um estádio. Mais que isso, moldaram e evoluíram formas de torcer próprias de cada região do Brasil, identidades culturais que nos marcam como brasileiros e como sujeitos de nossos costumes e manifestações locais.

O processo de elitização, privatização e ‘europeização’ do futebol

A partir da década de 1990, sob o discurso da ‘ordem’ e do ‘desenvolvimento’, e sob o argumento da adequação dos estádios brasileiros a padrões europeus de ‘segurança’, ‘conforto’ e ‘consumo’, uma campanha pela elitização e pela privatização do futebol é levada a cabo por clubes, federações, CBF e FIFA, em parceria com empresas patrocinadoras do esporte e corporações de mídia e com o apoio de governos.

A partir do fim da década, o preço dos ingressos das partidas aumenta em níveis superiores à inflação, e alcança, hoje, valores inviáveis para famílias de trabalhadores de classes baixa e média-baixa. É assim também que a capacidade dos estádios vai sendo diminuída a partir de reformas milionárias nos maiores estádios do país. Se antes, mais de 100 mil pessoas assistiam com segurança aos jogos em estádios como Maracanã e Mineirão, agora a capacidade de público cai praticamente pela metade, deixando mais pessoas do lado de fora da festa. Nesse caminho,os setores
populares vão sendo sumariamente extintos.

A Copa do Mundo de 2014 surge como a oportunidade ideal para o agravamento e a aceleração deste processo. As exigências da FIFA, somadas à ganância e à influência política e econômica de grandes empresas junto aos governos, possibilitaram uma reconfiguração completa dos maiores estádios das capitais que receberão os jogos. Os “palcos” dos jogos estão todos sendo desenhados dentro de uma perspectiva europeia de assistência das partidas e comportamento dos torcedores. Para além disso: antigos “templos” do futebol, agora se transformam em “arenas multiuso”, com “currais” Vips, poltronas acolchoadas e patrocínios de grandes marcas e grandes corporações. A razão é óbvia: estes empreendimentos geram enormes lucros tanto para empreiteiras construtoras, quanto para corporações que futuramente assumirão a exploração dos estádios.

Novamente, o caso do Maracanã é emblemático. De 1999 a 2006, cerca de R$ 400 milhões foram gastos pelo governo do Rio de Janeiro em reformas que prometiam deixar o estádio pronto para o chamado “padrão FIFA” e para a Copa de 2014. Em meados de 2010, no entanto, o Maracanã foi novamente fechado para “reformas”. Na realidade, o estádio foi praticamente implodido, permanecendo apenas sua estrutura, tombada como patrimônio histórico nacional. A reconstrução sairá a um custo total estimado em R$ 1 bilhão, mas que será provavelmente superado. Não satisfeito em demolir o velho Maraca – onde tantos riram e choraram juntos – e de jogar no lixo o dinheiro público investido nas últimas reformas, o governo já anunciou, sem pudor, que o “Novo Maracanã” será concedido à iniciativa privada, que, sem investir um único centavo, acabará embolsando os lucros e poderá explorar as receitas da forma que bem entender. O megaempresário Eike Batista já disse publicamente que é um dos interessados no negócio.

Sem a geral dos estádios, “assassinadas” arbitrariamente, morrem também as manifestações populares bem-humoradas, que se consagraram ali. Sem as arquibancadas, espaços de criação coletiva das torcidas, transformados em setores de cadeiras numeradas com lugares marcados – inclusive com a proibição de assistir o jogo em pé –, vão sendo inviabilizados elementos e ‘brincadeiras’ que só eram possíveis com a mobilidade dentro dos estádios, como as coreografias, o baile de bandeiras nos bambus, os “bandeirões” e as bandas musicais e baterias percussivas.

O resultado de todo este processo, observado de forma similar em todos os estádios da Copa, não é apenas o afastamento das classes populares dos locais das partidas, mas também a violenta asfixia de uma das mais ricas e autênticas manifestações da cultura popular brasileira.

* Texto extraído do dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil

AMANHÃ – Reunião da Campanha ‘O Maraca é nosso!’

QUANDO: SÁBADO (5), ÀS 11H

LOCAL: OCUPAÇÃO MANOEL CONGO – RUA ALCINDO GUANABARA, 20, 2o. ANDAR – CINELÂNDIA, CENTRO

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Proposta de Pauta

1 – Ação de panfletagem na finalíssima do Carioca

2 – Definição do texto do manifesto e do Panfleto

3 – Informes gerais

Campanha – O Maraca é nosso!

As 11 posições do Comitê Rio para Campanha Unificada sobre o Maracanã 

1 – Mau uso do dinheiro público: De 1999 a 2006, foram gastos cerca de 400 milhões de reais em reformas que prometiam deixar o Maraca pronto para a Copa de 2014. Agora decidem colocar tudo abaixo e construir um novo estádio por mais de 1 bilhão ( !!! ) , via BNDES.

2 – Privatização do Maracanã: Após as centenas de milhões das reformas, e o bilhão da reconstrução, não faz sentido um patrimônio público, de todos os cariocas, ser repassado para a iniciativa privada (Eike Batista!!), que não investiu no estádio mas está a postos para embolsar o lucro gerado por ele. O Maraca é da população e não pode ser vendido!

3 – Elitização do Maracanã: A geral, espaço tradicional de participação popular, com ingressos a preços acessíveis, já havia sido extinta. Está cada vez mais caro frequentar e assistir futebol ao vivo, o que tem afastado boa parte da população dos estádios e enriquecido as empresas de TV a cabo. Exigimos preços populares!

4 – “Europeização” do Maracanã: Sem a geral, morrem as manifestações populares bem-humoradas. Agora, botam abaixo também as arquibancadas, espaço coletivo de criação, para a construção de um Maracanã apenas com camarotes, currais “VIPs”, cadeiras numeradas e lugares marcados, inviabilizando nossas formas tradicionais de torcer, com mobilidade e liberdade dentro do estádio, coreografias, intrumentos musicais, bandeiras… Queremos respeito à nossa cultura de torcedor e exigimos a inclusão de setores populares no projeto do novo estádio!

5 – “Encolhimento” do Maracanã: Recentemente, mais de 100 mil pessoas assistiam ao jogo com segurança no estádio. Com cadeirinhas acolchoadas e lugares marcados, cai pela metade a capacidade, aumenta o preço do ingresso, e menos pessoas podem ver o jogo. Pra ver seu time, o geraldino hoje é obrigado a se espremer no boteco da esquina!

6 – Descaracterização arquitetônica do Maracanã: O estádio, que era um patrimônio histórico e cultural tombado, passou a ser um patrimônio demolido, às vistas de todos, com as bençãos do IPHAN. Sua arquitetura foi completamente descaracterizada, e a ideia é erguer uma “arena” asséptica e metida a besta. O Maracanã não pode virar shopping center!

7 – Remoção de famílias do entorno: Comunidades de baixa renda estão tendo suas casas demolidas para dar lugar a estacionamento gigantescos. Defendemos que o direito das pessoas a uma moradia adequada é um legado mais importante do que vagas para carros!

8 – Falta de Transparência e Participação Popular: Onde estão os laudos técnicos, os estudos de impacto e as plantas do projeto para o estádio? Em que mesa se decidiu a demolição da bancada e da marquise? Houve audiências públicas? Os torcedores, verdadeiros donos do Maraca, foram consultados? Onde está o balanço financeiro da SUDERJ que comprova que o Maracanã é deficitário?…

9 – Repressão ao comércio informal no entorno do estádio: Esqueça o isopor e a cervejinha antes de entrar no estádio. No “Novo Maracanã”, torcedor não bate-papo na porta do estádio, e trabalhador que tá na batalha toma madeirada no lombo e volta pra casa de mão abanando.

10 – Favorecimento explícito a grupos empresariais: Odebrecht, Andrade Gutierrez, Delta, Eike Batista… As figurinhas são sempre as mesmas: as mesmas que fornecem jatinhos, helicópteros e outros mimos para o Governador Sérgio Cabral; as mesmas que fecham contratos em todos os estádios da Copa e em outras obras de infra-estrutura; as mesmas que vão ser donas dos camarotes VIPs das “arenas”; as mesmas que financiam as campanhas dos partidos políticos mais ricos…

11 – Más condições de trabalho nas obras: Enquanto as empreiteiras enchem o cofre de dinheiro, os operários das obras do Maraca reivindicam benefícios fundamentais e melhores salários e condições de trabalho. Em 2011, os trabalhadores ficaram pelo menos 24 dias em greve.

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1950, Copa do Mundo: Nasce um estádio popular. Um templo onde brasileiros comuns – avós, pais, filhos, netos – sorriram, cantaram e choraram juntos.